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Pontal da Pedra Virada

Capítulo # 4

O pontal da Pedra Virada era o início de uma pequena e abrigada enseada. Há muitos anos esta enseada calma era utilizada como porto para abrigo de pequenos barcos de pesca.

 

Muito antes disso, quando a pesca de baleias era permitida e elas eram abundantes, ali se instalou uma fábrica de processamento de carne de baleia.

 

Chegaram a matar centenas de baleias por ano. Naquela época formou-se, em torno da fábrica, um pequeno vilarejo onde moravam os trabalhadores da fábrica e os marinheiros que todo dia saíam e voltavam de suas caçadas.

 

A caça exagerada quase levou à extinção das baleias e a fábrica teve que ser fechada. As pessoas que moravam na vila em volta da fábrica passaram a se dedicar à pesca como sustento. Com o fechamento da fábrica, a Estrada das Vacas deixou de receber manutenção e em pouco tempo ficou difícil de passar. Aos poucos, as pessoas foram abandonando o vilarejo e lá ficaram morando apenas o negro Martinho e sua esposa, Dona Eufrásia.

 

No fundo da casa, dona Eufrásia mantinha uma horta e algumas galinhas. O excedente da pesca do negro Martinho, que não era muito, era vendido na vila e com o dinheiro eles compravam coisas que não podiam fazer, como açúcar e farinha.

 

Havia uma ilha próxima da costa, a alguns quilômetros da enseada, onde negro Martinho acampava com frequência e onde podia pescar e coletar mariscos.

 

Sempre que ia para a ilha — e sempre ia sozinho para não mostrar o local para outros pescadores — ficava lá por 10 a 15 dias. Os peixes que ia pescando ele defumava num forno defumador que havia feito. Os mariscos ele deixava numa cesta mergulhada na água para não morrerem. Vez por outra, tinha sorte e conseguia pegar algumas lagostas.

 

Às vezes se atrasava um pouco na volta, e dona Eufrásia estava acostumada com isso. Mas desta vez havia sido diferente. Ele saiu para a ilha e não retornou. Com medo de que outras pessoas soubessem de onde Martinho tirava seu sustento, dona Eufrásia preferiu ficar quieta. Até que não pôde mais. Achando que alguma coisa havia acontecido com seu querido Negrão, como o chamava carinhosamente, resolveu ligar para a polícia.

 

Como já sabemos, a estrada que dava acesso ao pontal da Pedra Furada era muito ruim, de forma que o chefe de polícia resolveu pedir para que o pai de Tom e Tina o acompanhasse.

 

Era para ajudá-lo nos trechos mais difíceis. Felizmente não chovia havia alguns dias e a estrada devia estar seca.

 

Nos tempos da fábrica, a viagem da vila até a enseada não demorava mais do que uma hora e meia, mas os dois levaram longas três horas para chegar.

 

Quando chegaram, lá encontraram dona Eufrásia muito nervosa. A última vez que passara um nervoso tão grande fora na tempestade de 1972, quando Martinho ficou preso na ilha por 30 dias. O barco foi arremessado contra as pedras da ilha e ele teve que reparar o barco na ilha mesmo com os pouquíssimos recursos que tinha. Mas desta vez não houvera tempestade, o tempo estava bom e, o pior, Dona Eufrásia e Martinho haviam discutido fortemente na véspera da ida dele à ilha.

 

Embora muito forte e vigoroso, Martinho já tinha 70 anos e deixava dona Eufrásia nervosa com as saídas. Queria que ele parasse com as idas à ilha. Já não precisavam de muito e podiam vender galinhas no lugar dos peixes.

 

O que dona Eufrásia não compreendia é que as viagens à ilha eram mais do que dinheiro para Martinho. Nos dias que ele passava ali, se lembrava dos momentos gloriosos de caçador de baleias. Pelo menos era assim que ele via.

 

Houve uma vez em que os sete marinheiros, em um pequeno barco a remo, encontraram com uma baleia gigantesca. De fato, há tempos não encontravam uma baleia tão grande. Martinho era o arpoador, o homem responsável por ficar de pé na proa do barco e enfiar o arpão nas costas da baleia. No momento do golpe, com a dor que sentia, era comum a baleia fazer um movimento e derrubar o arpoador. Como raramente sabiam nadar, muitos morriam afogados.

 

O tempo havia virado, uma tempestade alcançou o pequeno barco, e as ondas subiam e desciam com força, obrigando Martinho a se equilibrar com dificuldade.

 

A grande baleia apareceu bem no momento em que decidiram voltar. Não precisou de palavras, bastou um olhar para os sete decidirem caçar aquela baleia. O vento aumentava muito enquanto eles tentavam se aproximar por trás do animal. Os seis homens no remo lutavam com força para vencer o vento.

 

Água se acumulava no fundo do barco tornando-o mais pesado de manobrar. Foi quando ela afundou. Esperaram um pouco, olharam para lá e pra cá e quando acharam que não a veriam mais, ela apareceu bem embaixo do barco.

 

De repente a baleia apareceu bem embaixo do barco.

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O jato de vapor que soltou foi bem em cima de Martinho. Surpreso, mas não despreparado, enfiou fundo o arpão nas costas da baleia.

 

A corda do arpão estava embaraçada por causa da tempestade fazendo o barco virar e jogando todos ao mar. A baleia presa lutava pela vida, mas o arpão firmemente cravado não lhe deu chance. Eles capturaram a baleia. 

 

Com o barco emborcado não conseguiram voltar, mas o socorro chegou logo na tarde do dia seguinte. Aquela história ficou famosa e era motivo de orgulho de toda tripulação daquele dia.

 

E eram estas lembranças que alimentavam negro Martinho.

 

O chefe de polícia achou as respostas de dona Eufrásia às perguntas para elucidar o caso muito estranhas. Foi só quando foi mais duro que a verdade apareceu.

 

Negro Martinho havia deixado uma carta, mas como há tempos os óculos de leitura da velha haviam sido perdidos, a carta não pôde ser lida. Mais do que tudo, dona Eufrásia tinha medo de que a carta fosse uma despedida e tinha medo de que seu Negrão a tivesse abandonado.

 

Ela trouxe a carta com mãos trêmulas e os olhos cheios d'água. 

 

A carta começava assim:

 

"Minha Nega Frasinha,

Você deve de tá preocupada comigo, mas não fique. Aquele moço da cidade que lhe falei, o branquelo de olho azul..."

 

Nisso, o chefe de polícia e o pai das crianças trocaram olhares de surpresa. 

 

Haviam achado o ocupante da terceira poltrona.

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